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Crianças com corações de adultos

EDITORIAL

Crianças com corações de adultos

Isabela de Carlos Back GiulianoI; Bruno CaramelliIV; Bruce Bartholow DuncanIII; Lucia Campos PellandaII

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC

IIFundação Universitária de Cardiologia, Porto Alegre, RS

IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS

IVUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil

Correspondência Correspondência: Isabela de Carlos Back Giuliano Servidão do Araça Azul, 122 casa 1 - Lagoa da Conceição 88062365 – Florianópolis, SC – Brasil E-mail: isabelag@cardiol.br, isabela@ccs.ufsc.br

Palavras-chave: Lípides, aterosclerose, prevenção de doenças, fatores de risco, criança, adolescente.

O relógio do mundo acelerou. Nos últimos 200 anos, o que antes era uma civilização centrada basicamente na economia familiar, regida pelo relógio natural do crescimento de animais e plantas, tornou-se um mundo frenético e globalizado, onde não há tempo para contemplações ou valorização de um ritmo orgânico.

Nossos filhos e netos já nasceram neste mundo repleto de informações. Íntimos da Internet, dos controles remotos e dos diversos tipos de jogos eletrônicos, sentimos até uma ponta de inveja da familiaridade com que lidam com todos estes estímulos. Ao mesmo tempo, nos vemos aliviados e orgulhosos por parecerem mais adaptados a esta nova realidade: numa analogia à tecnologia, parecem "novas versões de seres humanos", mais inteligentes, versáteis, adaptáveis e resistentes a tanta informação.

Mas será que essa é a melhor herança que deixamos para eles, que, afinal, são seres humanos geridos por um material genético que se adapta mais lentamente do que suas brilhantes cabecinhas?

Aparentemente não. Vide a pandemia de obesidade e suas co-morbidades, que parece atingir mais precoce e gravemente esta nova geração, como discutido pelo estudo intitulado "Variabilidade da Frequência Cardíaca, Lípides e Capacidade Física de Crianças Obesas e Não Obesas"1. Do mesmo modo, temos os problemas que antes nem se cogitava na infância, como os do coração de um atleta de alto rendimento, como discutido no estudo intitulado "Esporte competitivo na criança e no adolescente: exame pré-participação, eletrocardiograma obrigatório?" Em prol de prepararmos nossa prole para um mundo cada vez mais competitivo – ou de gerar atletas virtuosos, talvez na tentativa de compensar um desejo de nossa própria infância – aceleramos o envelhecimento do seu aparelho cardiovascular.

Acredita-se que esta seja a primeira geração que viverá menos que seus pais2 e há uma preocupação mundial com a provável sobrecarga do sistema de saúde nas próximas décadas, caso não haja controle do risco cardiovascular, em nível populacional.

E como andamos aqui pelo Brasil? Há uma política de prevenção efetiva, em nível nacional, que vise à proteção cardiovascular de toda a família? Há crescentes iniciativas governamentais nesta direção, mas ainda insuficientes, considerando a dimensão do problema. Temos honrosas e importantes iniciativas isoladas pelo país, além de excelentes estudos clínicos e populacionais em algumas regiões3-15, mas muito aquém do necessário.

Precisamos de um diagnóstico nacional dos fatores de risco para doenças crônicas em todas as idades, formulação de critérios nacionais de normalidade para parâmetros cardiovasculares, além de uma política efetiva que inclua todos os brasileiros. Intervenções na família, na escola, na comunidade, nas empresas, entendendo saúde realmente como um direito universal e inalienável. Programas que contemplem o ser humano em todo o seu ciclo de vida, com todas as limitações e fragilidades inerentes às suas características biológicas, que infelizmente não conseguimos "turbinar" ou "atualizar" como gostaríamos.

Prevenção cardiovascular não tem idade. Deve iniciar antes da concepção e se manter por toda a existência, entendendo o processo pelo prisma ecológico. Em cada fase da vida, guardadas as características específicas do momento, há uma oportunidade de prevenção. Alguns períodos podem ser mais críticos do que outros em termos de consequências duradouras. Por exemplo, o período fetal, no qual o metabolismo é preparado para enfrentar as mudanças do mundo externo, ou a infância, na qual os hábitos de saúde começam a se formar.

Os fatores de risco cardiovasculares são conhecidos há mais de meio século, e são muitas as formas de controle e tratamento disponíveis. Ensaios clínicos aparecem com frequência nos periódicos médicos, demonstrando redução significativa na morbi-mortalidade cardiovascular com anti-hipertensivos, antiagregantes, e fármacos para redução dos lípides. Chegamos à sofisticação de elaborar recursos estatísticos para analisar, em conjunto, estudos como milhares de pacientes, por meio das meta-análises e revisões sistemáticas. Com estes recursos é possível detectar pequenos – mas significativos – efeitos de medicamentos e de intervenções cirúrgicas. Portanto, desconhecimento não é a causa da manutenção das doenças cardiovasculares como a primeira causa de morte na maior parte dos países.

A proposta de uma teoria inflamatória para aterosclerose permitiu a formulação de várias abordagens terapêuticas específicas. A identificação de agentes infecciosos, ou até mesmo a especulação sobre uma seleção natural de indivíduos mais propensos às complicações da aterosclerose, por meio de bactérias ou vírus, representou uma possibilidade promissora. Entretanto, do ponto de vista de resultados, pouco se viu até agora. Os diversos tratamentos produziram efeitos limitados aos ensaios clínicos, que pouco ou nada modificam o panorama epidemiológico da doença cardiovascular. É possível que a prevenção tenha chegado tarde demais para estes pacientes. Para eles, o tratamento das complicações pode ser mais eficiente para reduzir a morbi-mortalidade. A contraposição entre prevenção e tratamento das complicações é um erro, que frequentemente ocorre quando os recursos econômicos são limitados. Não há como negar que a prevenção deve começar muito cedo, sobre a mulher em idade fértil, para oferecer ao feto um ambiente intrauterino saudável. Devemos lembrar, entretanto, que a prevenção tem suas limitações, que incluem aderência, custo e necessidade de adoção e manutenção de estilo de vida saudável, numa sociedade na qual o modus vivendi conduz à obesidade e ao sedentarismo coletivos.

Este desafio exige novas propostas. Que a batalha seja travada em duas frentes. O tratamento preventivo deve começar cedo, com a futura mamãe e com as crianças, ensinando, educando e ganhando parceiros para o controle dos fatores de risco. As próprias crianças se revelam parceiros muito eficazes na mudança de comportamento dos pais. Paralelamente – e contemporaneamente – pesquisas sobre novos marcadores, novos agentes causais e novos fármacos poderá manter acesa a esperança de modificar a história natural desta doença, quando a prevenção não foi suficientemente efetiva.

Artigo recebido em 08/07/09; revisado recebido em 08/07/09; aceito em 10/07/09.

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  • 2. Olshansky SJ, Passaro DJ, Hershow RC, Layden J, Carnes BA, Brody J, et al. A potential decline in life expectancy in the United States in the 21st century. N Engl J Med. 2005; 352 (11): 1138-45.
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  • 4. Ribeiro RQ, Lotufo PA, Lamounier JA, Oliveira RG, Soares JF, Botter DA. Fatores de risco cardiovasculares associados com excesso de peso em crianças e adolescentes: estudo do coraçao de Belo Horizonte. Arq Bras Cardiol. 2006; 86 (6): 408-18.
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  • 7. Strufaldi MW, Silva EM, Puccini RF. Metabolic syndrome among prepubertal Brazilian schoolchildren. Diab Vasc Dis Res. 2008; 5 (4): 291-7.
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  • 14. da Silva MA, Rivera IR, de Souza MG, Carvalho AC. Blood pressure measurement in children and adolescents: guidelines of high blood pressure recommendations and current clinical practice. Arq Bras Cardiol. 2007; 88 (4): 491-5.
  • 15. Barbiero SM, Pellanda LC, Cesa CC, Campagnolo P, Beltrami F, Abrantes CC. Overweight, obesity and other risk factors for IHD in Brazilian schoolchildren. Public Health Nutr. 2009; 12 (5): 710-5.
  • Correspondência:

    Isabela de Carlos Back Giuliano
    Servidão do Araça Azul, 122 casa 1 - Lagoa da Conceição
    88062365 – Florianópolis, SC – Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009
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